All alone ain't much fun so you're looking for the thrill [1]

Susana Mendes Silva & Rogério Nuno Costa


[1] O título é uma frase da música “Save a Prayer”, dos Duran Duran, que Susana Mendes Silva escolheu para dançar com Rogério Nuno Costa durante a performance “Vou A Tua Casa - LADO C”, que este apresentou na Casa da Memória, em Guimarães, em Outubro de 2018, no contexto do Colóquio Internacional “Performance e Intimidade”, organizado pelo Núcleo de Investigação em Estudos Performativos da Universidade do Minho.




Na sequência das colaborações e cruzamentos — práticas, investigações, práticas enquanto investigações, investigações enquanto práticas — encetadas por/entre Rogério Nuno Costa e Susana Mendes Silva desde sensivelmente 2010, este texto desenvolve um diálogo epistolar que regista e questiona as práticas performativas dos dois artistas, simultaneamente mapeando memórias situadas, que dão forma a uma biografia de encontros pessoais e profissionais. Num texto ao mesmo tempo “performativo” — escrita enquanto performance — e “íntimo” — escrita enquanto encontro que desafia as delimitações, éticas e estéticas, da própria performance —, são abordadas as especificidades do dispositivo-performance enquanto encontro íntimo que ambos têm explorado no seu trabalho. Consequentemente, também as questões da documentação, dos limites da intimidade/privacidade, da relação entre vida e trabalho e dos espaços performativos são reveladas e debatidas. Para tal, revisitam-se alguns dos projectos desenvolvidos pelos dois artistas em regime de colaboração/co-criação, mas também projectos individuais cujos sub-produtos documentais são re-contextualizados num novo plano dialogante de escrita. O texto evoca novos espaços mais ou menos ficcionais de prospecção a partir de materiais textuais, visuais e outros, ao mesmo tempo activando dispositivos de memória e promovendo uma partilha-do-sensível num regime de um-para-um; ou de um particular para outro particular. O resultado deste (re)encontro espelha, assim, o próprio processo de escrita, mantendo o formato de correspondência por e-mail que lhe deu origem, apresentando-se cronologicamente e com edição posterior mínima. Mais do que um compêndio antológico, perspectiva-se uma experimentalidade textual que se autonomiza enquanto “obra”, em última análise revelando as ontologias que antecedem o trabalho dos dois artistas na sua relação com a contemporaneidade.


On 30 Sep 2020, at 02:27, Rogério Nuno Costa <rogerio.nuno.costa@gmail.com> wrote:

 

Querida Susana,


Iniciar contigo um processo epistolar de reflexão sobre e à volta das nossas práticas-investigações — as artísticas e as outras todas —, significa, para mim, um regresso a sítios (ou a memórias situadas, para ser mais preciso) que me são muito especiais. Essencialmente porque se inscrevem nessa tensão arte-vida que me é tão cara, e que invariavelmente acabamos sempre por re-activar de cada vez que nos propomos a fazer algo juntos. Tal como no “Vou A Tua Casa” [2] (2003), peça cuja memória documental nos terá aproximado há pouco mais de uma década, também entre nós se foi esboroando, no tempo e no espaço que fomos atravessando depois do nosso primeiro encontro-performance, o significado imediato que atribuímos à relação artista-espectador. Em que momento é que nos esquecemos, se é que nos esquecemos, do encontro-feito-performance que deu início à nossa relação? Em que momento, se é que é possível defini-lo enquanto tal, é que eu deixei de ser espectador para passar a ser amigo? Ou será que nunca deixei de ser espectador? Ou será que nunca o fui? E a performance? Ainda não terminou, ou não chegou verdadeiramente a iniciar?

 

A conjuntura pandémica hiper-vigiada que atravessamos poderia eventualmente informar este nosso empreendimento, reforçando a sua "actualidade", mas interessava-me, e creio que a ti também, poder ultrapassar a espácio-temporalidade remota (performance via Skype) que nos juntou em 2008, despachá-la para o regime do circunstancial, e focar-me, contigo, nas políticas da proximidade e da intimidade que consubstanciariam a nossa relação nas suas diversas intensidades. Artistas que se admiram mutuamente existem imensos. O que nos diferencia?

 

Passo-te a palavra com estas interrogações, sem contudo esperar que me devolvas respostas, claro. Tal como as performances que fomos habitando ao longo dos últimos anos, será este mais um pretexto para estarmos juntos. Reforço o pré- que antecede o texto. Não sei/sabemos onde isto nos irá levar, mas sei que a cada investida estaremos sempre a (re)começar.



susana mendes silva <susana.mendes.silva@gmail.com> escreveu no dia sexta, 9/10/2020 à(s) 18:22:

 

Querido Rogério,

apetece-me regressar ao momento em que dançámos.

Um slow.

Lembras-te?

 

Quando me disseste que querias que eu fosse a artista convidada para a tua performance-jantar “Vou A Tua Casa - LADO C” confesso que andei ali um bocado às voltas a pensar o que iria fazer durante as outras apresentações a que assisti do “Performance e Intimidade”. Mas quando já estávamos na Casa da Memória a prepararmos as mesas de jantar, de repente tornou-se presente o que queria fazer para ti, o que queria fazer connosco[3]. Tu sabes que eu adoro dançar. É das coisas mais felizes que posso fazer.

 

Por isso, de repente, surgiu-me a vontade de dançar um slow contigo — que é um género que já não existe, já não se dança agarradinho nas discotecas. Essa forma tão próxima de estar com alguém — que muitas vezes era um/a desconhecida/o que nunca voltaríamos a ver de novo. E repara que não era uma música qualquer, era a “Save a Prayer” dos Duran Duran[4], na qual o Simon Le Bon canta:

 

"And you wanted to dance so I asked you to dance

But fear is in your soul

Some people call it a one night stand but we can call it paradise"

 

Eu convidei-te para dançar, porque tem sido quase isso que fazemos com os outros: convidá-los a aproximarem-se bem perto de nós por um momento, apesar dos medos de ambos os lados, e criarmos um espaço de intimidade no presente. E confesso que não estava à espera que todos os participantes do jantar também se levantassem e começassem a dançar por si, aos pares ou até em trios.

 

Sempre me interessou isto, que é ir buscar coisas banais para espoletar performances.

Olho para trás e parece que andámos sempre a cruzar-nos em pensamento e em obra mesmo antes de nos conhecermos e depois de nos encontrarmos, mesmo quando não falamos durante algum tempo um com o outro, ou até mesmo nas estranhas e maravilhosas coincidências da nossa vida privada. Acho que é capaz de ser esta sintonia que nos junta, ou seja, enquanto "condição de dois sistemas capazes de emitir oscilações radioeléctricas da mesma frequência".

 

Como sabes, durante o confinamento, voltei a fazer “A bedtime story” (de 2007)[5] por sugestão da Diogo Sottomayor — que conheci no “Performance e Intimidade” — e como sabes nesta performance eu proponho ler histórias de adormecer a quem as quiser ouvir. Para tal basta marcar uma hora comigo. Ter voltado a fazer isto nestas condições foi bastante diferente de 2007. Porque independentemente da nossa situação familiar, amorosa, sexual, doméstica, ou laboral, nós já estávamos quase todos em casa. Esse lugar de intimidade, mas que nós sabemos que isso não é, per se, uma garantia que ela exista.


Este re-fazer deu origem a uma instalação: "A bedtime story [durante a Covid-19]" (Julho de 2020)[6]. Nesta, eu criava um ambiente quase doméstico — que remetia para a minha sala onde tinha estado a fazer as performances — com plantas vivas e tapetes, e onde também apresentava um diário de 19 a 23 de Março impresso em formato poster, um vídeo com a carta manuscrita que a Diogo me enviou a seguir a ter participado na performance, e um slideshow com imagens tiradas do Instagram, do Facebook, e fotografias tiradas a partir da minha janela durante o confinamento.


Desta obra, surgem-me duas questões:


- A primeira é sobre a premência da documentação. E aqui retomo a entrevista que te fiz para a minha tese de doutoramento[7], onde eu refiro que na “Marte”[8] há uma conversa na qual o Luís Firmo afirma que a documentação que produzes é, para ele, uma outra obra com autonomia própria. E sinto, um pouco, que foi isso que também acabei por fazer.

- A segunda é sobre a questão do encontro. Como é que nos encontramos quando nos pedem distanciamento físico? Será que se torna impossível fazer performance sem estarmos mediados pela tecnologia?


 

On 24 Oct 2020, at 03:15, Rogério Nuno Costa <rogerio.nuno.costa@gmail.com> wrote:

 

Querida Susana,

 

As duas questões com que terminas a tua última missiva quase que podiam ser o resumo das motivações que têm orientado a minha prática artística, e que eu sintetizaria no binómio performance e documentação. Permite-me regressar a alguns pressupostos que já terão sido abordados profusamente na entrevista que me fizeste para a tua tese de doutoramento, mas que me parece importante retomar para o contexto desta conversa.

 

O "LADO C", terceira e última parte da trilogia "Vou A Tua Casa", estreou em Lisboa no contexto do Festival Alkantara, em 2006, na casa-em-obras onde vivia, num formato que na altura chamei de conferência-performance-jantar. Interessava-me concluir o projecto que me ocupou durante quase 4 anos com uma performance textual que pudesse fazer uma espécie de retrospectiva teórica da trilogia, elencando os principais conceitos trabalhados, as fontes de inspiração, todas as catchphrases e name droppings, vários elementos documentais oriundos das duas versões anteriores (sobretudo cartas trocadas com espectadores e outros artistas), num discurso que tinha tanto de poético/literário quanto de académico, jornalístico e filosófico. Tudo embrulhado numa experiência que se queria partilhada[9] (a comida aqui surgia como estratagema básico de aproximação, mas também de sedução), mas também, e por "defeito de fabrico", apresentada enquanto manifesto pessoal e artístico. A peça consistia num diário de bordo lido à mesa, na primeira pessoa, para um grupo que na versão original não passava das 6 pessoas, predispostas a participar na defesa colectiva de uma tese teatral[10]. Foi a única peça da trilogia que teve uma estruturação mais convencional: um texto escrito que era sempre igual, uma duração prevista, vários mecanismos de construção ficcional/confessional que davam à performance uma aura mais teatral. Os elementos da imprevisibilidade, do acaso, mas sobretudo da responsabilização autoral do espectador perante a obra, intensamente trabalhados nas duas versões anteriores, existiam também no "LADO C", mas de uma forma mais controlada, diria até didáctica. Quem acede ao "Vou A Tua Casa" através do "LADO C", é quase como chegar à obra de um artista através do catálogo final comprado na loja de souvenirs do museu. Conhecer a obra do artista através da documentação da obra do artista: construída, apresentada e tornada pública pelo próprio artista. Para mim, é uma forma de aceder ao projecto tão válida quanto todas as outras. Por isso é que sempre me interessei por conhecer (e estudar) as motivações que levam um determinado espectador a querer ver uma performance. Ou a não querer ver. Eram muitas as pessoas que em 2003 me diziam que não queriam um estranho em suas casas a fazer uma performance para/com elas. Com o evoluir do projecto, nas suas diferentes ramificações, fui percebendo que essas pessoas são tão espectadoras quanto aquelas que me receberam em suas casas, ou que combinaram blind dates comigo em cafés, praças, miradouros ou sombras de árvores da cidade de Lisboa e arredores. Percebi que há várias formas de nos deixarmos atravessar por uma ideia de performance que se constrói e apresenta enquanto dispositivo de revelação (mais do que de criação) de um qualquer tempo/espaço pessoal, privado, íntimo, intransmissível e, às vezes, intransponível. Indocumentável também. Dizer "não quero ver" é uma forma de "ver". Esta é uma das muitas razões que me fizeram interessar-me cada vez mais pela questão da documentação, sobretudo por se tratar de um dos calcanhares de Aquiles do meu trabalho. Para lá das imediatas questões do foro ético/relacional, impuseram-se-me questões que esbarravam, a cada nova investida, com a tensão entre realidade e ficção, que eu queria muito trabalhar da forma o mais equitativa possível. Interessavam-me os binómios clássicos (forma versus conteúdo, processo versus resultado, etc.), mas na medida exacta em que me fosse possível dissecá-los primeiro para os baralhar depois. Era importante para mim que os dados do jogo fossem o mais transparentes possível para ambas as partes. Neste cenário, ter alguém a tirar fotografias durante um encontro que se promovia enquanto "encontro real", por exemplo, estava completamente fora de questão. É por isso que os espaços onde as performances acontecem, e até mesmo os corpos que os habitam, não passam de pré-textos para o encontro. Nada aí há para documentar, na verdade. As performances não são nem site-, nem time-, nem sequer body-specific (como alguém chegou a afirmar). A haver alguma especificidade, será a da própria "vida" (life-specific?[11]), a qual, a ser documentada/documentável, só o poderá ser se as situações propostas já trouxerem agarrados dispositivos quotidianos de registo. Sim, isto tem ligação directa com o "Dogma 95" do Lars von Trier/Thomas Vinterberg (1995) e, concomitantemente, com o meu "Dogma 2005"[12]: tirar uma fotografia-souvenir com o espectador, escrever um poema a duas mãos, gravar uma canção cantada a duas vozes, e acções de arquivo posteriores como a organização dos e-mails trocados, das SMSs, ou até conversas/entrevistas/textos-reflexão pós-performance, só acontecem se brotarem de forma "natural" da relação estabelecida entre artista/espectador[13]. E mesmo quando tal acontecia, a utilização posterior desses materiais num formato mais controlado (o blog do projecto[14], por exemplo), esbarrava sempre com muitos problemas. Tantos, que decidi, em 2006, logo após a conclusão do "LADO C", criar um projecto de documentação cujo objectivo fosse encontrar soluções, estratégias e metodologias para essa documentação do indocumentável. Chamou-se "Projecto de Documentação" (www.vouatuacasa.wordpress.com) e, como bem disse o Luís Firmo, autonomizou-se em relação ao projecto que lhe deu origem. Tentei resgatar coisas que só existiam na minha memória e na dos espectadores, encontrar as "provas dos crimes", resquícios às vezes intangíveis que tocassem na ferida que separa ética de estética, ou que revelassem a própria ineficácia de alguns enunciados experimentados anos antes — os fracassos e os sucessos que fazem o historial de qualquer experiência performativa. Sim, muitas performances correram "mal"; e era preciso falar disso. Achava eu, e infelizmente continuo a achar, que se fala muito pouco do que corre mal. O "Vou A Tua Casa" vivia/viveu sempre em cima de pressupostos muito frágeis, a começar pelo próprio entendimento do factor tempo, que no contexto da segunda versão era tão elástico que nunca se sabia muito bem quando é que a performance começava e quando é que terminava[15]. Esta infinitude temporal (menos infinito, mais infinito...) colocava ainda mais entraves e problemas à documentação. A começar pela pergunta básica: o que documentar? Quando regressava, muitas vezes com os próprios espectadores, aos lugares e às memórias do encontro, deparávamo-nos sempre com a evidência de uma performance-pretexto-para-um-encontro. Como se tudo o que acontecia antes e depois do encontro fosse indubitavelmente mais importante que o encontro propriamente dito. Uma parte considerável dos espectadores nem se lembrava muito bem, passados 2 anos, do que realmente tinha acontecido; mas lembrava-se vividamente do que estava a fazer quando se decidiu a enviar-me o primeiro e-mail (e porquê), assim como se lembrava de episódios vários que se sucederam ao "fim" convencionado do encontro. Aqui, a documentação partilhada era não uma outra performance, mas a mesma performance prolongada no tempo e no espaço. Esquecermo-nos da performance fazia parte intrínseca do mecanismo-performance da própria performance. Ainda que com pressupostos e pontos de partida diferentes, sinto que o nosso encontro-feito-performance também continua activo na infinitude temporal do "depois", como se fosse verdade que ainda estamos a darmo-nos a conhecer um ao outro naquela performance via Skype que fizeste para mim em 2008. O que poderá talvez diferenciar as nossas práticas existe na evidência de que eu continuo a pensar estas coisas sob o prisma caleidoscópio do teatro e tu das artes visuais. No teu caso, e corrige-me se estiver errado, a documentação, mesmo que acidental, acaba por despontar da própria materialidade "plástica" que sustenta as tuas propostas. Ela faz parte intrínseca do encontro, por assim dizer. Não tenho bem a certeza do que estou a dizer, por isso deixava-te com a tarefa (hercúlea) de desatar este nó na tua próxima resposta!...

 

Mas antes, algumas notas avulsas sobre o que fizeste no "LADO C", extemporaneamente apresentado na Casa da Memória, em Guimarães, no contexto do Colóquio “Performance e Intimidade” (2018). Teres escolhido um slow para dançarmos foi deveras impactante para mim. De repente, tudo fez sentido: aquilo que nos une e a simplicidade evidente que subjaz às formas que escolhemos para estar juntos (beber chá, ler um livro, dar um passeio pelas ruas de Montemor-o-Novo...), assim como a própria velocidade a que estas coisas (nos) acontecem. Dançar "devagarinho" numa performance que também tem essa noção de tempo arrastado. Permite-me a criação de uma nova hashtag para os meus posts no Facebook: #slow_performance. Tem, aliás, tudo a ver com o conceito de slow cooking, que agora é trend, mas que na altura em que estreei o “LADO C” era apenas uma forma, conceptual e emocional (não são antónimos…), de me relacionar com a comida, com o acto de comer/cozinhar e, invariavelmente, com os próprios espectadores.

 

Respondendo à tua segunda pergunta: o encontro parece estar, de facto, no epicentro das nossas peças. A pluralidade de espaços que escolhemos para esses encontros são importantes, mesmo quando meramente pré-textuais (desculpa insistir tantas vezes nisto...), na medida em que informam as tecnicalidades necessárias à mecânica da performance, à clareza e à transparência das "regras", ao recorte formal que ajudará o/a espectador/a, em última análise, a criar o sentido que pretende conceder à experiência, algo que nós, artistas, não queremos propriamente controlar. O espaço online, que a pandemia veio acentuar (às vezes de forma bastante leviana e teoricamente muito mal defendida, quando não defendida de todo), já existia nas nossas práticas desde sempre. E não há aqui nenhum interesse em conceder ao nosso trabalho um qualquer pioneirismo visionário; pelo contrário: a história da performance “remota” é tão antiga quanto a própria performance enquanto disciplina artística. É anterior a nós, ultrapassa-nos, e ultrapassa também o porquê de às vezes recorrermos a estratégias de mediação que procuram uma intimidade que não dependa da partilha do mesmo espaço físico. Mas o encontro mantém-se, inviolável. Aliás, mais importante do que estar junto, no mesmo aqui e agora, interessa-nos o estar perto. A intimidade não advém propriamente da questão do toque efectivo entre dois corpos, mas mais da sua potência; a intimidade que procuramos não chega a ser tangencial. É algo que fica sempre a caminho. Ou algo para o qual falta sempre algo, indefinida e infinitamente[16]. Faria sentido trazer para aqui o famoso Paradoxo de Zenão... Seja na chamada Skype, seja na esplanada do Largo do Carmo onde tomei café com um espectador com quem viria a ter uma relação amorosa de 2 anos (a performance terá terminado com o fim, "real", do relacionamento?), vamos embora sempre com a sensação, qual Aquiles, de que não chegamos nunca a ultrapassar a tartaruga. O que fica por dizer é imensamente maior do que o que foi concretamente dito. Tenho portanto uma grande dificuldade e resistência em procurar diferenciais na performance "ao vivo" e na performance "mediada pela tecnologia", até porque a performance é, ontologicamente, sempre ao vivo e, simultaneamente, será sempre mediada. O resto é, pun intended, "cenário”.

 

 

 

susana mendes silva <susana.mendes.silva@gmail.com> escreveu no dia segunda, 26/10/2020 à(s) 16:39:

 

1

Não diria melhor: é mesmo uma “tarefa hercúlea”.

Começaria por dizer que me parece que há um ponto de contacto importante que é as nossas performances de um-para-um não poderem ser feitas por terceiras/os. Ou seja, a haver reenactments, terão de ser feitos por nós, não te parece? É óbvio que poderá haver pessoas que as queiram fazer de novo, mas nós já não estamos lá, e sem nós lá, elas tornam-se “corpos” a quem a alma foi roubada. Não é algo que se possa reproduzir a partir de uma partitura ou de um guião. É certo que alguém pode fazer “A bedtime story”, mas o que é importante é ser eu a fazê-la, a fazê-la para aquela pessoa, a quem digo e faço coisas que não digo nem faço a mais ninguém.

Depois diria que é importante essa infinitude do nosso encontro-performance; até diria que essa infinitude acabará apenas quando já não estivermos cá, ou até apenas só quando já ninguém se lembrar de nós. E quando isso acontecer, a documentação será a única possibilidade de alguém nos trazer a um futuro.

Há quase sempre uma dualidade, ou prismas (como lhes chamas) nos encontros académicos sobre performance. Sobre a herança que vem das artes performativas e sobre a herança que vem das artes plásticas ou visuais. Existem, de facto, genealogias diferentes, mas em termos de modos de documentação, será que isso faz diferença? É certo que nas artes visuais há esta vida própria da performance, que é ir fugindo a todas as taxonomias. E isso é, para mim, o mais interessante. Por exemplo, na minha tese abordo a questão da documentação da performance de um/a-para-um/a através de pensar como o déficit visual torna o documento oral e escrito tão importante. Ou seja, por não serem eticamente adequados, permitidos ou desejados registos visuais ou áudio-visuais, e por não haver partituras, guiões ou instruções fixas, como é que podemos aceder a algo que já não está a acontecer?

Tenho experimentado de várias formas: por exemplo, há casos em que a documentação que existe são apenas textos meus ou de quem participou, há outros em que a própria performance parte de documentação, ou outros ainda em que a performance e a sua documentação dão origem a uma nova obra.

Não sei muito bem se, como dizes, despontam da própria materialidade “plástica”. O que queres exactamente dizer com isto?

 

2

É muito interessante pensar o que é estar próxima/o, “estar perto". E, no entanto, esta proximidade mediada tecnologicamente nem sequer é nova, uma vez que foi iniciada com a comunicação à distância, especialmente quando os símbolos começaram a viajar mais rápido que o seu transporte, como no caso do telégrafo óptico, do telégrafo eléctrico e, mais tarde, do telefone. A noção de espaço e de presença foi completamente alterada. Como relata Tom Standage no livro The Victorian Internet, que no início do uso do telefone algumas esposas, preocupadas com os maridos adoentados, deitavam sopa quente no bocal.

Aliás, no meu caso, e como referi na comunicação que fiz no Colóquio, se olhar para trás no tempo, penso que o meu interesse em fazer performance deriva da mediação e do desejo de estar com os outros. E só em 2008 é que compreendi que isso vinha das minhas vivências em miúda: gostar de trocar cartas com desconhecidos através do Pen Club da Verbo Editora, adorar folhear a lista telefónica e ligar para pessoas que não conhecia, ou ter trabalhado um Verão como voluntária numa rádio local em vez de ter ido para a praia, ou ter sido operadora de Banda do Cidadão. Desde meados dos anos oitenta, o meu irmão e eu tínhamos uma estação de banda do cidadão (também conhecido como CB). A banda do cidadão é um serviço via rádio, bidireccional, a curta distância, que pode ser usado por qualquer pessoa para fins pessoais ou profissionais. Era bastante popular em diversos países europeus, Estados Unidos da América e Austrália durante os anos 1970 e ao longo dos 1980. O serviço disponibiliza vários canais – que podem ser usados para comunicar – e isso é, de certa forma, um meio semelhante aos chatrooms com voz na Internet. A Banda do Cidadão permitia também que as pessoas comunicassem com outras de uma forma quase anónima. Era um meio de comunicação alternativo, visto ser bastante utilizado por pessoas que não podiam depender apenas de linhas telefónicas fixas. E talvez seja por isso que me interessam espaços disponíveis para o pensamento e práticas livres e igualitárias.

Aliás, talvez seja esta a altura ideal de relembrar que nos conhecemos primeiro online — numa altura em que o Skype ainda nem tinha imagem — e só depois ao vivo em Lisboa. Mas a ideia que guardo é que foi apenas um prolongamento do encontro que já tínhamos tele-iniciado.

 

E concordo contigo quando afirmas que a performance é ontológica e simultaneamente sempre ao vivo e sempre mediada. E até gostava de repetir esta tua frase de que gosto muito: "A intimidade não advém propriamente da questão do toque efetivo entre dois corpos, mas mais da sua potência”. Aliás, por causa desta tua afirmação, pus-me a pensar sobre como me aborrece que achem que sou uma contadora de histórias porque uso a leitura de textos ou porque abordo o passado. Mas — e usando, sem dúvida, ferramentas arqueológicas ou forenses — talvez o que faça é criar encontros com pessoas que já não existem fisicamente. São encontros para as tornar vivas. Para mim e para todos. Ou como escreveu o Celso Martins — no Expresso[17], a propósito da exposição e performances do projecto “Como silenciar uma poeta” — que a obra seja uma forma de “reparação”.

Será que faz sentido fazer performances para nos encontrarmos também com os mortos, com os silenciados?

 

 

 

On 31 Oct 2020, at 05:53, Rogério Nuno Costa <rogerio.nuno.costa@gmail.com> wrote:

 

Querida Susana,

 

A tua última carta fez-me pensar, ou re-pensar, em alguns dos lugares-comuns que são frequentemente associados ao meu trabalho (o qual, é importante que o diga, não se resume só ao projecto “Vou A Tua Casa” e aos que dele brotaram nos anos seguintes à sua conclusão). Quando digo lugares-comuns, não me refiro só aos que vêm carregados com uma qualquer conotação negativa (falácias várias, erros de interpretação, desvios conceptuais levianos, e outros mal-entendidos que inúmeras vezes me fizeram ter que defender, ou re-defender, um posicionamento a favor de uma qualquer clareza perdida), mas também àqueles que, por serem inusitados, inesperados, ou por apontarem formalizações não previstas por mim (por exemplo: a colagem do trabalho à categoria “comercial” de teatro-ao-domicílio), me desafiaram a arquitectar modos outros de produção que pudessem incluir esses pontos de fuga na estrutura promocional das performances de uma forma positiva, ou pelo menos irónica. A questão da originalidade ou não-originalidade dos aspectos essencialmente formais de algumas performances, por exemplo, foi um dos lugares-comuns mais insistentes. Ainda que nunca tenha feito parte do meu discurso e da minha acção, era um comentário recorrente, às vezes irritante, que se perpetuava mesmo depois de eu afirmar em textos programáticos, entrevistas, ou na letra da própria performance, que o fazer acontecer teatro em espaços "alternativos" ao palco à italiana era tão antigo quanto o próprio teatro. O teu “problema” com o autocolante da contadora de histórias, que muitas pessoas insistem em colar na embalagem em que embrulham as tuas práticas, é idêntico a tantos outros labels que me foram atribuindo ao longo dos anos: o trabalho sobre a especificidade do lugar (ou dos lugares), a poética do quotidiano, a própria questão da intimidade, a aproximação à arte conceptual e, como não poderia deixar de ser, o discurso autobiográfico. Costumo dizer que o que faço será sempre auto, será sempre bio e, se quisermos forçar a barra hermenêutica, será sempre gráfico. Mas custa-me dizer que seja autobiográfico. Como me custa dizer que seja qualquer outra coisa, quando a força motriz da minha prática tem sido, insistente e dogmaticamente, fazer trabalhos que não sejam temáticos, que não sejam sobre. Tenho uma maneira muito livre, alguns chamam-lhe leviana, desinteressada ou até demissionária, de me relacionar com os conteúdos que escolho para as peças. É evidente que eles me interessam, mas não são centrais. No limite, as peças podem ser “sobre” qualquer coisa, desde que eu não me aprisione na obrigação de ter que dar a essa coisa uma qualquer seriedade teleológica, ou de lhe prestar vassalagem teórica, ou de a transformar em serviço educativo. Interessa-me tanto despender tempo da minha vida a trabalhar um autor canónico da literatura dramática, como me interessa despender tempo da minha vida a investigar as razões que me faziam, na infância, preferir ficar em casa tardes inteiras a cortar folhas de jornal em pedacinhos exactamente iguais, para depois os empilhar até desenhar pequenos edifícios numa maquete no chão da garagem, em vez de ir para a rua brincar, como todas as outras crianças. O "Vou A Tua Casa" tem tanto de reflexão sobre o teatro e as suas potencialidades artísticas, sociais, políticas, filosóficas, quanto tem de curiosidade lúdico-voyeurista de espreitar pelo buraco da fechadura (literalmente!), não para expor o outro, nem tanto para me expor a mim, antes para testar os limites da arte enquanto pretexto para cuidarmos uns dos outros, em dispositivos relacionais que sejam o mais justos possível para ambas as partes. No limite, o trabalho pode ser “sobre” tudo, como também pode ser “tudo”. E aqui está outro lugar-comum (o da frivolidade!) que fui recebendo ao longo dos anos, às vezes metido num copo meio cheio, às vezes metido num copo meio vazio. Eu lá fui dizendo que esse copo, a existir, seria apenas um copo com água…

 

Concordo contigo quando dizes que as nossas performances de um-para-um não podem ser feitas por terceiras/os. Esta será, a meu ver, a pedra de toque do nosso trabalho na sua relação com a questão da intimidade. Trata-se de uma intimidade pessoalizada, por assim dizer. E, lá está, isto não tem nada a ver com autobiografia... Até porque são trabalhos que apontam numa equidade crítica de forças. São duas biografias, não uma. Não estamos a pedir às pessoas que se voluntarizem para subir ao palco para segurar num adereço e ajudar o mágico a mostrar os seus truques; às vezes, estamos só a sentar-nos com as pessoas na plateia para com elas observar a performance por vir. A pessoalização é, assim, não só partilhada, como acontece em ambas as direcções. Trata-se da construção de uma relação na qual a posição do espectador é tão importante quanto a nossa. O espectador é tão agente criador do encontro quanto nós, artistas e iniciadores da partilha, somos espectadores da nossa própria obra.

 

O estar perto é, assim, não tanto uma estratégia de proximidade pela proximidade, mas antes um compromisso ético que diz: vamos fazer isto juntos. É um contrato. No fim, podemos dizer que o que fizemos é nosso. Intransmissível e inviolável. É evidente que muitas destas coisas advêm de pressupostos que somos nós a controlar, e, nesse sentido, alicerçam-se numa conceptualidade que pode ser, assumo-o, bastante problemática. A evidência de que mais ninguém pode replicar estas peças prende-se com o facto de que se tratam de propostas radicalmente não-retinianas (olá Duchamp!), ou seja, não existem para serem “vistas”. E é talvez aqui que reside a sua resistência (trágica!) às operações mais ortodoxas do registo e da documentação. Digo trágicas porque, no meu caso, foi muito alto o preço a pagar por me ter recusado a enviar “o-vídeo-da-peça” a potenciais programadores interessados no meu trabalho, por exemplo. Percebi com o tempo que deveria desistir de um certo circuito que havia pré-estabelecido para a minha prática artística e procurar outros, ou então criar circuitos alternativos aos existentes. Os sub-produtos documentais que fui desenvolvendo pós-"Vou A Tua Casa" são disso testemunho. A vontade de continuar a trabalhar em torno da figura do espectador e da sua responsabilização perante a obra (olá Duchamp outra vez!) continuou no programa curatorial “A Oportunidade do Espectador”[18] (2007-2010), e está agora a ser musculado, noutros formatos e noutros modos de produção (laboratoriais, meta-académicos, editoriais) no projecto “Universidade”[19] (2015-2025). É também esta a infinitude que delineei na carta anterior, e que tu desenvolves na tua, que me interessa continuar a explorar. Não quero propriamente criar peças em série, mas é vital que as coisas que faço dialoguem umas com as outras, formal e conceptualmente. E que possam também expandir-se, infiltrando-se em vários territórios de produção de pensamento. A academia é um desses territórios, e é tão importante quanto todos os outros. Fechava este parágrafo com outro lugar-comum: sim, é verdade que ando há 20 anos a trabalhar em cima das mesmas coisas! E se no início isto me parecia uma condenação, hoje encaro-o como o meu mais apaixonante gesto de resistência: à instrumentalização, à falsa liberdade, às políticas do star system, a todos os discursos hegemónicos, mas também à exigência neo-liberal de que, porque somos artistas, temos obrigatoriamente que “fazer” “arte”. E, de preferência, fazê-la sempre. E de preferência todos os anos, duas vezes por ano, com processos de criação de dois meses (no máximo) e uma bem musculada estratégia de mobilidade internacional. Eu acho isto a maior tragédia dos tempos modernos...

 

Sobre a minha afirmação a propósito de uma certa documentação que despontará da “materialidade plástica” das tuas peças, assumo-a primeiro como um potencial erro de interpretação, mas também como uma ambição minha. Invejo a clareza das tuas propostas, invejo o teu incrível poder de síntese. Se calhar a diferença entre as nossas práticas, a existir, ocorrerá apenas na forma como os enunciados são apresentados, e não tanto nas características mais ou menos documentáveis do que acontece a seguir. Atrai-me nas tuas peças a sua imanência enquanto “potencialidades objectuais”; por exemplo: os enunciados textuais, que eu leio enquanto obras autónomas, e com os quais, ou através dos quais, eu sou convidado a fantasiar um encontro-performance. Isto para mim foi muito evidente quando gentilmente me ofereceste o teu livro “Vida e Trabalho”[20], que consumi avidamente, qual objecto-fetiche, mal cheguei a casa. Eu não assisti a muitos daqueles trabalhos, mas o simples folhear do livro fez-me sentir que os tinha agora comigo. Qual coleccionador de arte, eles agora eram “meus”. Tenho dúvidas que as minhas peças possam fazer eclodir o mesmo tipo de atracção nos espectadores, mas posso estar completamente enganado… Estarei eu a cair na armadilha da objectualidade que atribuímos às/aos artistas visuais? Será que interessa olhar para as tuas obras sob esse prisma? Não será isto uma tremenda contradição em relação a tudo o que já te disse ao longo desta nossa correspondência? Em última análise, ambos acabamos por nos relacionar com a própria construção “ficcional” de encontros porque nos interessam os encontros, não porque nos interessem as fotografias dos encontros. Aprecio muito o trabalho da Sophie Calle (à qual fui muitas vezes comparado), mas não é fotografia que quero fazer. É teatro.

 

Concluindo: tenho uma relação muito paradigmática com a ideia de “presente”, ainda que o tenha usado muito nas fundamentações das peças que criei durante a fase “Vou A Tua Casa”. Acho mesmo que só existe passado e futuro. E esses “mortos” do passado que tu reanimas nas tuas peças podiam ser — se calhar são — “mortos” do futuro. Acho que também é isso que fazemos quando deixamos os encontros prolongar-se para lá da sua morte anunciada: reanimamos o futuro. Foi um pouco isso que experienciei quando assisti à tua performance “Ana” na Rua das Gaivotas 6, apresentada no Festival Silêncio, em 2016, um ano depois da morte da Ana Hatherly. Viajei até ao futuro nesse prolongamento de uma artista maior que não tive a sorte de conhecer... E o meu interesse em fazer performance deriva também desse desejo de me relacionar com uma outra categoria de “mortos”, nomeadamente aqueles que, por norma, acabam por ser votados ao silêncio. De um espectador espera-se sempre que seja esse agente sem rosto, sem voz e sem corpo, mas de cuja existência e presença a obra e o artista dependem. Foi a crua evidência deste paradoxo que me fez abandonar o teatro (pré-2003) que eu fazia com outros artistas e que me morbidamente me insatisfazia. Foi por causa desse paradoxo, também, que eu decidi continuar a chamar teatro às coisas que comecei a fazer a seguir, "sozinho", mesmo quando tudo à minha volta me dizia que não era bem teatro o que fazia, mas que também não era performance, nem dança, nem artes visuais, nem escrita... Enfim, não era nada. Ele há coisa mais incrível do que podermos chamar às coisas o que bem nos apetece? Mas eu era também o tipo que estudou Jornalismo; uma âncora como outra qualquer, que me deu, e continua a dar imenso jeito! A minha urgência em partilhar com os demais as coisas sobre as quais me debruço — e que se me interessam, logo hão-de interessar a outros —, tem subjacente um pressuposto essencialmente ético; vejo-o quase como um dever. É por isso que costumo dizer, meio a brincar meio a sério, que a minha metodologia de trabalho é o Código Deontológico dos Jornalistas. Podia agora abrir aqui um parêntesis infinito e perigoso, qual buraco-negro, para a questão da verdade... Mas é melhor (re)parar.

 

Algumas notas avulsas que escrevi no meu caderninho virtual quando te estava a ler e que não consegui articular no texto:

 

- A tua Banda do Cidadão é o meu Toque de Saída, jornalinho escolar do qual fui director durante uns tempos no liceu e onde publicava toda a sorte de histórias que eram mais “reais” do que muita gente pensava…

- O teu interesse em fazer performance deriva da mediação e do desejo de estar com os outros. O meu também! E pouco mais há a dizer em relação a isto…

- Eu “não vi” aquela tua peça chamada Hóspede. Ou seja, eu “vi” aquela tua peça chamada Hóspede[21].

- Quando dizemos que não nos queremos expor, já nos expusemos…

- Não há vencedores nem vencidos na relação artista/espectador. Isto para mim é fundamental. Não tenho qualquer intenção de convencer o espectador seja do que for, mesmo quando escrevo, por exemplo, um manifesto que aponta nesse sentido. Interessa-me jogar, sim, mas para empatar. Interessa-me dar a cada experiência, a cada encontro, essa ideia de prolongamento. E depois do prolongamento, instaurar outro, e outro, até que seja o tempo a esboroar a experiência ao ponto de ela se confundir com a vida, que é como quem diz, ao ponto de ela ser vida…

 

Sim, a nossa relação será um prolongamento iniciado em performance. E porque estamos a reflectir sobre ela, gostaria de terminar este meu longo “solilóquio” com uma pergunta camuflada de desafio (ou ao contrário): O que fazer a seguir? Que é como quem diz: gostava muito de voltar a fazer uma performance contigo. Como será essa performance? Ou será que já foi/já está a ser?

 

 

 

susana mendes silva <susana.mendes.silva@gmail.com> escreveu no dia sexta, 31/10/2020 à(s) 18:18

 

Querido Rogério,

Nunca sei o que fazer a seguir. Isso tem tanto de angustiante (e desgastante) como de libertador… É angustiante porque não sigo nenhuma linha cronológica no meu trabalho, e por isso não tenho o conforto e a segurança de ir desenvolvendo séries consecutivas e consequentes, mas antes vou deixando que a vida me traga pessoas e desafios. É libertador porque me permite ser surpreendida com um fascínio meio infantil por pessoas, coisas, factos ou espaços. Isso exige que coloque uma energia nova em quase tudo o que faço, e que vá re-inventando metodologias e aproximações. E há ainda algo importantíssimo para nós, que é — tal como referiu La Ribot ainda agora no seu discurso quando recebeu o Leão [Leoa :-) ] de Ouro[22] na Bienal de Dança em Veneza — que é este entendimento da prática artística enquanto conhecimento e pensamento que ganha corpo:

 

Aujourd’hui, il est nécessaire de croire à la danse comme source de connaissance, de savoir que la danse crée des liens forts entre les personnes et qu’elle invente des mondes meilleurs. Aujourd’hui, il est de plus en plus nécessaire d’accepter de nouveaux regards, d’autres regards et de penser poétiquement le monde, avec une vraie conscience, en dépassant les modes et le marché du divertissement.

 

Talvez há menos de um ano, falámos — a propósito de um possível projecto — daquilo que realmente me interessava fazer contigo. E o que me interessava e continua a interessar é a nossa indisciplina artística, a subversão das regras, o amor pela partilha e a vontade de pensar com as/os outras/os.

 

É isso que sempre fizemos e é isso que vamos fazer a seguir: pensar, indisciplinar, subverter e amar.

 

 

 

APÊNDICE

 

Ao longo do processo de correspondência trabalhámos uma pequena lista — iniciada pelo Rogério — de memórias situadas (que fomos corrigindo, acrescentando e riscando):

 

RNC - A Mónica Guerreiro sugere-me que veja/leia sobre o teu trabalho, pois acredita que vou encontrar vários pontos de contacto. 2006 ou 2007?

SMS - No meu caso foi a Maria João Garcia que me disse que eu devia espreitar o teu trabalho, pois achou que as nossas práticas tinham muitos pontos de contacto. Deve ter sido em 2006, pois foi ainda antes de eu ir para Londres.

RNC - Engraçado! Não conhecia essa ligação à Maria João Garcia, que recordo ter sido uma das primeiras cobaias a experimentar o "LADO B", num encontro belíssimo na estação de metro do Cais do Sodré, em 2004.

 

RNC - Performance via Skype para o Centenário da República (“Uma história”), eu no Estoril, tu em Londres. 2008 ou 2009?

SMS - Foi em 2008!

 

RNC - Tomámos chá no Largo do Carmo, Lisboa. 2009 ou 2010?

SMS - Sim, numa casa de chá que já não existe. Talvez ainda em 2009, pois regressei a Portugal em Abril de 2010.

 

RNC - Participámos ambos na mesa-redonda “A generosidade na arte contemporânea”, no Fórum Dança (Lx Factory, Lisboa), a convite do Nelson Guerreiro. 2010.

SMS - Sim, foi um painel muito interessante e tivemos um jantar muito divertido a seguir. Éramos nós e o João Galante, certo?

RNC - E também o João Pedro Vale e o Nuno Alexandre. E a Patrícia Portela via Skype!

 

RNC - Entrevistas-me para a tua tese de doutoramento, na tua casa no Restelo. 2011.

SMS - Deve ter sido na Ajuda, naquela casinha em frente ao Palácio onde me fizeste uns maravilhosos scones sem glúten para aquele programa que ficou mal gravado!

RNC - Aí está mais um projecto que me esqueci de colocar nesta lista! Foi em 2010, no contexto do Festival Alkantara, onde colaborei com a Patrícia Portela na criação de uma rádio online, uma das inúmeras experiências artístico-culinárias que realizei. Era um programa de rádio em que cozinhava com/para artistas nas suas próprias casas. Um prolongamento do "Vou A Tua Casa" a que chamei de "Vou À Tua Mesa". O programa perdeu-se, mas a memória do que ficou terá inspirado outros encontros que tivemos a seguir.

 

RNC - Vou ver a tua exposição “Virgínia, Dâmaso, Emílio e Teófilo” ao Espaço Campanhã, no Porto, e a seguir vamos jantar. 2012.

SMS - Lembras-te do que fomos comer?

RNC - Queríamos ter ido jantar a um restaurante "típico"; não encontramos nada de jeito e acabamos por ir comer pizza a um sítio caríssimo! Vê-se logo que não somos do Porto…

 

RNC - Vou ver a tua performance “O tesouro” na mala voadora (Porto), e a seguir vamos dançar. 2012.

SMS - Foi a primeira coisa pública que aconteceu na mala voadora! Já não me recordo onde dançámos… No Passos Manuel? No Plano B?

RNC - Nada disso. Fomos à Tendinha[23], que tu és rapariga do rock! ;)

 

RNC - Somos convidados a desenvolver uma sessão de trabalho para o encontro “Indirecções Generativas”, organizado pelo baldio - estudos de performance, n'O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo. Juntos, criámos e apresentámos “uma tarde”. 2013.

SMS - Aqui só uma pequena nota e vê se estou correcta: fui convidada, e como tu também participavas nas Indirecções, convidei-te para desenvolvermos a sessão juntos, não foi?

RNC - Sim! Fomos ambos convidados para participar nas Indirecções individualmente (eu enquanto mestre de cerimónias gustativas, uma vez mais...), e tu decidiste chamar-me para a tua sessão de trabalho.

 

RNC - Vou a Coimbra assistir ao Colóquio Internacional “Conceitos e Dispositivos de Criação em Artes Performativas”, para te ouvir falar sobre mim. 2015.

SMS - Estive a rever e não te menciono nessa comunicação… :-O Tens a certeza que foi nesta?

RNC - Bem, se calhar eu fui assistir a essa comunicação achando que irias falar de mim (por causa da relação com a tua tese), mas não falaste. Ai este meu ego... Ai esta minha memória...

 

RNC - Vou a Lisboa para me despedir de Lisboa e fico a dormir em tua casa, antes de rumar para a Finlândia; Decidimos comprar o mesmo telemóvel! 2016.

SMS - O meu preto e o teu branco. Uma espécie de yin e yang.

 

RNC - Convido-te para conduzires um laboratório em torno do teu trabalho para o programa “Unfinished - Summer School”, por mim curado para o Armazém 22, em Vila Nova de Gaia; levo de presente o teu livro “Vida e trabalho: não como antes mas de novo”. Agosto de 2018.

SMS - Gostei tanto do que aconteceu nesse laboratório. Foi fundacional para uma série de projectos performativos com um cariz pedagógico que tenho desenvolvido desde então.

 

RNC - Cruzámo-nos no colóquio “Performance e Intimidade”, organizado pelo Núcleo de Investigação em Estudos Performativos da Universidade do Minho, em Guimarães; participas como artista convidada na minha performance-jantar “Vou A Tua Casa - LADO C”; dançámos juntos e a seguir fomos comer tostas mistas para o hotel. Outubro de 2018. 

SMS - Sim, nesse colóquio apresentei precisamente uma comunicação sobre a noção de intimidade e de registo e documentação das minhas performances — como elas podem ser pensadas, mostradas, restituídas ao público enquanto objectos, leituras ou som. O Jani e tu comeram tostas mistas! Eu fiquei a ver, porque não havia pão sem glúten no meu hotel :-D

 

RNC - Vou visitar-te à tua nova casa, em Lisboa, poucos dias antes de confinamento. 2020.

SMS - Não me lembrava que tinha sido pouco antes… Que momento premonitório visto agora à distância.

 

RNC - Depois de alguns zooms e chamadas telefónicas fugazes, decidimos começar a escrever este texto a quatro mãos e a dois endereços de e-mail. 2020. Já agora, em que ano é que defendeste a tua tese? Ou quando é que tornaste a entrevista que me fizeste disponível online?

SMS - A tese foi defendida em Julho de 2012 num dia quentíssimo. Estiveram 42º em Coimbra e foi um dos dias mais bonitos da minha vida. E tornei a tese e a entrevista[24] disponível no site academia.edu pouco depois.

 

RNC - Para além da performance "Ana", que menciono no texto mas que me esqueci de inserir na timeline, lembrei-me também de ter ido assistir a um ensaio de uma outra performance que fizeste com o Miguel Pereira no Museu do Chiado. Não me lembro do título nem do ano…

SMS - Foi “A Directora”, em 2013. Uma outra “morta” maravilhosa![25]

 

 

 

Nota: Este texto foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990.















[2] Conjunto de três performances teatrais criadas e apresentadas por Rogério Nuno Costa entre 2003 e 2006 em Portugal e Inglaterra, com reposições posteriores na Bélgica, Países Baixos e Finlândia. A primeira versão (Lado A) acontecia nas casas dos/as espectadores/as, a segunda versão (Lado B - No Caminho) consistia numa performance de um-para-um em espaços públicos à escolha do/a espectador/a, e a terceira versão (Lado C) fechava a trilogia com uma lecture-performance que se servia à mesa de jantar em casa do próprio artista.













































[3] E partilhei-o apenas com o Jani Nummela porque era ele que iria colocar o P.A. e a música a tocar na altura certa.









[4] OUVIR































[5] “A bedtime story” foi uma performance apresentada no âmbito do festival “INTIMACY Across Visceral and Digital Performance” que decorreu em Londres e online entre 7 e 9 de Dezembro de 2007. Cfr. LINK








[6] Instalação criada para a exposição colectiva “Fazer de casa labirinto” — com Carla Cabanas, Fernão Cruz, Gisela Casimiro, Henrique Pavão, Horácio Frutuoso, Mané Pacheco, Nuno Nunes-Ferreira, Sara Mealha, Susana Mendes Silva, e curadoria de Ana Cristina Cachola e Sérgio Fazenda Rodrigues — na Balcony Gallery, Lisboa.





[7] "A performance enquanto encontro íntimo" foi a primeira tese apresentada e defendida no âmbito do Doutoramento em Arte Contemporânea, Colégio das Artes, Universidade de Coimbra, e é baseada na minha prática artística performativa. Está disponível em acesso livre em: LINK


[8] Cristina Grande, Luís Firmo e Miguel Wandschneider, “Performance e curadoria: pontos de situação e experiências de produção”, in Revista Marte, Lisboa, Associação de Estudantes da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2008, nº3, p.57.



































[9] Sempre me referi a estas peças enquanto experiências partilhadas e co-participadas, em detrimento do palavrão “interactivas”, que considero tremendamente redundante e infértil para consumo teórico. Dizer-se que esta performance é “interactiva” é tão inócuo quanto dizer que esta arte é “artística”.


[10] Numa análise às peças “Saudades do tempo em que se dizia texto” (Teatro Taborda, 2003), “Vou A Tua Casa” (casa privada, 2003) e “ACTOR” (Centro Cultural de Belém, 2004), Mónica Guerreiro escreve em artigo publicado no nº1 da revista Sinais de Cena (2004) com o título A dramaturgia do eu na vida de todos os dias, que estas propostas propõem “a construção de espectáculos-tese, para um intérprete, cuja identificação se confunde com a da personagem construída, a qual fala de si”, numa “aparente confusão entre pessoa, persona e personagem.”














































[11] Título do trabalho de performance co-criado com as artistas e espectadoras Teresa Prima e Maria Lemos durante a fase de pesquisa documental do “Vou A Tua Casa”, no Festival A8, em Torres Vedras (2006).


[12] LINK






[13] Uma grande parte da documentação recolhida contempla, de facto, os objectos visuais e textuais produzidos pelos/as próprios/as espectadores/as antes, durante e depois das performances.


[14] LINK






















[15] O crítico de artes performativas Tiago Bartolomeu Costa escreve sobre o “No Caminho” para o nº1 da revista Título Provisório (2005), num artigo intitulado Pessoal e intransmissível: “A proposta parece começar por convocar Virginia Woolf no seu livro «Mrs Dalloway»: viver a vida num só dia. No Caminho dura o tempo de uma vida, a do espectáculo. Que nasce e morre com os dois participantes, amigos ou amantes, conhecidos ou anónimos, próximos ou inimigos... mas duas pessoas que num certo dia, num sítio escolhido e àquela hora marcada, decidiram dedicar-se inteiramente ao outro (...). Uma proposta radical de teatro-no-teatro.”
















































































[16] A historiadora de arte Verónica Metello assina um dos textos do “Projecto de Documentação” (2006), intitulado Lado C ou o éter da distância, escrevendo: “(esta proposta) assenta, notavelmente, num outro território de subjectividade, trazendo para o jogo comunicacional a expectativa de um tempo e de um momento outro. Um tempo que é o da superação de uma distância. Mas uma distância que seria apenas superada, jamais na sua totalidade, mas na continuidade, no devir de cada um dos trabalhos. Dado que cada trabalho implica a definição de uma relação — vários dispositivos sublinham conscientemente esse objectivo — enceta-se o diálogo, são pedidos considerandos e opiniões sobre o curso da vida e trabalho do performer, trocam-se contactos, é tirada, no final do Lado C, uma ‘fotografia de família’. É no devir da relação estabelecida, e na expectativa da superação de uma ordem de distância em virtude da continuidade dessa relação, que se situa de modo notável a aura destes trabalhos.”






















































































































[17] “Como silenciar uma poeta” tinha como base a exposição na Sala Polivalente do MNAC, e teve três momentos performativos — “De mim” (na Rua das Gaivotas 6), “Tradução #1” (nos Estúdios Victor Cordon, CNB), e “Tradução #2” (na Rua das Gaivotas 6). O texto crítico, escrito por Celso Martins, a propósito do projecto, foi publicado na edição 2493 do Jornal Expresso de 8 de Agosto de 2020: LINK










































































































































[18] Vários espectadores da trilogia “Vou A Tua Casa”, e também participantes de workshops “Dogma 2005” realizados em 8 cidades portuguesas e alemãs, são convidadas/os a criar a sua própria versão da trilogia. As residências de criação e respectivos resultados foram apresentados em três fases, desembocando numa instalação documental apresentada no Atelier Real (Lisboa) e no Circular - Festival de Artes Performativas de Vila do Conde, em 2010. LINK


[19] LINK
































[20] Susana Mendes Silva e Antonia Gaeta. "Vida e trabalho : não como antes mas de novo - Life and work : not as before but again / Susana Mendes Silva", Lisboa: Fundação EDP / Fundação Carmona e Costa, 2018. Este livro-objecto foi pensado e realizado especificamente para a exposição homónima que se realizou no MAAT, em Lisboa, entre Abril e Setembro de 2018. O livro possibilitou a activação de diferentes momentos, ao longo da exposição, que a artista apelidou de Páginas – por serem projectos que remetiam para determinadas páginas do livro. A exposição, curada por Antonia Gaeta, estava patente na Galeria Cinzeiro 8, e expandia-se a outros espaços do museu, a outros lugares da cidade, e online na Rádio Quântica, com o programa quinzenal Rádio Susana.
































































[21] Sobre esta performance, ver a entrevista de Susana Pomba a Susana Mendes Silva: LINK














[22] https://youtu.be/DsjZVuwtOis

[23] Tendinha dos Clérigos.

[24] https://www.academia.edu/11203839/Transcri%C3%A7%C3%A3o_Susana_Mendes_Silva_conversa_com_Rog%C3%A9rio_Nuno_Costa

[25] Em "A Directora", Susana Mendes Silva e Miguel Pereira comemoraram, com o público, o Dia Internacional dos Museus, relembrando uma mulher muito especial: Maria José de Mendonça. O happening esteve integrado nos eventos paralelos da exposição "Hetero QB" no MNAC e propôs uma visão histórica a partir da ausência de um discurso de género na história da museologia portuguesa. Após a performance, foi colocada na Wikipedia a página dedicada à museóloga: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Jos%C3%A9_de_Mendon%C3%A7a