HABITAR um palco
ANDRÉ BARATA
Itinerário — Geologia de um regresso a casa é a criação de uma lenta e longa viagem com partida em Helsínquia e chegada a Lisboa, por terra ou mar, a fazer sempre junto à superfície, sem descolar e em transportes que levam outros também. Desenvolvida no âmbito do projeto STAGES, que alia teatros da Europa num propósito de transição ambiental verde, esta criação não transporta equipas e equipamentos.
Um regresso assim institui o lugar movente de uma reflexão-acção que se demora em perguntas mais certas, que ajam uma mudança e não apenas mais uma adaptação. Pode a pergunta que nos transforma ser mais a da sustentação do que a da sustentabilidade?
Num regresso, o destino já foi origem de quem antes partira e agora faz o caminho de volta e a origem já foi destino desejado como uma utopia por quem então partira. Rogério Nuno Costa é o viajante que esperou a língua mais pessoana no finlandês que o recebia, apesar de tão incomum à língua portuguesa. Na utopia, o destino que se quer guarda a origem.
Numa viagem de 50 dias, o viajante é também o território viajado, uma psicobiografia retrospectiva que se faz reflexão em percurso. A cada avanço viaja-se no tempo, um tempo-espaço autobiográfico, o passado profundidade que se escava, arqueologia para um saber a articular, mas passo dado que é também camada geológica, chão pisado por muitos, subsolo colectivo que estremece. A Geologia convoca o Antropocénico, a pegada, o chão concreto, o singular caminho feito, mas também a ressonância do caminho que levámos todos os que somos de uma dada época, de que participamos a diferentes escalas, ou em algum plano, estrato, filão – a individual, a de uma geração, a da humanidade diante dos riscos existenciais. Por isso, Itinerário propõe-se ser um longo solo epistolar, com um destinário suficientemente indeterminando para poder incluir todas as camadas desta geologia humana.
Esta é a última peça de um tríptico, a que Rogério Nuno Costa intitulou "Psicobiografia de um Herói Perdedor", e que prolonga criações anteriores, Missed-en-Abîme (2021) e Lamento imenso (2023), em que notas de nostalgia, até saudade, reverberam afectuosas junto com um pensamento que não abdica da sedimentação consciente. No passado, a necessidade exigiu a saída forçada, o chão ficar a meio, uma ferida que fica, mas o regresso regenera com heroísmo a consciência de tudo o que se deixou para trás. O herói perdedor não é um herói que perdeu, mas o intérprete retrospectivo de um heroísmo da própria perda. Regressar é também voltar a esses restos que se teve a coragem de perder, largar e deixar ir, e que também continuaram as suas vidas. Por isso, nunca se volta ao mesmo, sequer ou sobretudo a casa, que carrega esta assincronia. Algo que James Baldwin experimentou e a que deu corpo literário em O Quarto de Giovanni – «tu não tens uma casa até a teres deixado e, depois, tendo-a deixado, não podes regressar a ela.» Rogério Costa Nuno fala de nostofobia, noção que designa a aversão ao regresso a casa. Talvez um fundo dessa aversão habite tensamente a nostalgia e reciprocamente, talvez o sentimento de casa seja constituído por esta tensão, talvez o regresso seja, então, um vazio denso. A nostalgia e a saudade podem nutrir um inconformismo que se pratica na retrospectiva e na sua escrita com destinatário geológico.
Mas é preciso perder-se nesse entre-lugar que não foi nem será para, então, se deixar encontrar pelo que se perdeu, entre tanta vida que aconteceu. E há também um heroísmo discreto em deixar-se viajar pela viagem, aprender a perder-se nela, ser o acontecimento que o mundo faz acontecer, criado esse espaço-tempo nas costas da aceleração que compele à mobilização para ir em frente, nunca parar, nunca olhar para trás. Não tem o regresso qualquer coisa do olhar do anjo benjaminiano, que desprendendo-se da linearidade se vira para a história? E não tem este caminho de regresso algo do espaço vazio de Peter Brook? Talvez pudéssemos dizer que Itinerário propõe cenicamente não um espaço, mas um caminho vazio pelo tempo-espaço.
Esta viagem de regresso é morada para reverberações e paradoxos. Reverbera Vou A tua Casa (2003), porque também se trata de voltar a um lugar artístico que se habitou há muitos anos, uma casa criativa, e experimentar passar pelo permeio temporal, que inclui a austeridade que marcou uma década com a impossibilidade de se ter casa, e a pandemia que marcou a seguinte com o confinamento da casa que se pudesse ter. Adivinhava-se ali um rasto do futuro.
A questão da habitabilidade, sobre onde habitar e, antes disso, como habitar, fazer hábito, encontrar refúgio, tornou-se o trauma essencial de uma época. É o problema da catástrofe ecológica que nos preocupa, como uma grande tarefa colectiva de habitação. Mas é também a chave para a sua compreensão. STAGES tem aí o seu pensamento e acção. Como pensar o problema da habitação, para aludir a um título de Ruy Belo, a habitabilidade dos palcos e como inscrevê-la na do mundo? Em Itinerário, Rogério Nuno Costa ziguezagueia pelas localizações no continente europeu dos palcos que serão etapas de uma errância, um tour feito de desvios para teatros nacionais que o esperam e que desviam como um ensaísta caminhado pela sua própria escrita.
Vou A Tua Casa não tinha palco, não demonstrava, pelo menos de forma tão evidente como um Teatro Nacional, o salto para um outro espaço, de algum modo à parte, mas dentro da realidade, como as heterotopias de Michel Foucault. E, não obstante, poderia também ser lugar de espectáculo, performance, representação. O esforço agora é simétrico. Encontrar no Teatro Nacional D. Maria II a continuidade, em vez da suspensão do próprio, o espaço mais próprio, o lugar do refúgio, o desejo dos sem abrigo de todas as catástrofes, a social, a económica, a ambiental, a convivial, ecologia em sentido profundo. Pode um teatro nacional com a sua função institucional ser casa assim, uma “tua casa” a que vou, onde sou acolhido? Quem encontramos a habitá-la? A força institucional de um teatro nacional pode ser mobilizada para um questionamento do palco como casa, refúgio, mas também sobre uma prática de refúgio não subjugada, de resistência. As cosmopoéticas do refúgio – de Dénètem Touam Bona – propõem o desvio, a evitar o embate directo com a linearidade, a sensibilizar a cumplicidade do refúgio, a activar-lhe a potência de lugar. O refúgio para os desalojados de um mundo desabitado responde com uma habitabilidade. Esta é a proposta criativa, de um regresso à grande casa do teatro português, o Teatro Nacional D. Maria II, casa que Rogério Nuno Costa nunca habitou. Talvez seja esse o interstício constituinte do habitar como vida.