(AO)NTOLOGIA

(UM UPCYCLING TEXTUAL: 1999-2025)

ROGÉRIO NUNO COSTA


#1


Durante toda a noite, os meus amigos e eu estivemos acordados à luz de candeeiros que, embora tão rendilhados como a nossa alma, tinham corações eléctricos. E, enquanto espezinhávamos a nossa preguiça, discutimos nas mais longínquas fronteiras da lógica e rabiscámos, em papéis, palavras dementes. Um orgulho imenso nos dilatava o peito, ao ponto de nos sentirmos sozinhos e de pé como faróis ou sentinelas da frente de batalha, face ao exército das estrelas inimigas. Sozinhos com os mecânicos nas infernais fornalhas dos grandes navios; sozinhos com os fantasmas que forrageiam no ventre das locomotivas; sozinhos com os bêbados que batem asas contra as paredes! Depois o silêncio agravou-se. _ Vamos, meus amigos! _ disse eu. _ Saiamos daqui! Há que abalar as portas da vida!... Vamos! É este, realmente, o primeiro sol nascente da terra!... Nada iguala o esplendor da sua epopeia vermelha. No entanto, não tínhamos nada para morrer, além do desejo de nos livrarmos, enfim, da nossa amolecida coragem! Cortei o mal pela raiz e o nojo pregou comigo, de pernas para o ar, numa fossa... Quando levantei o corpo, lodoso e mal cheiroso, senti o ferro vermelho da alegria trespassar-me deliciosamente o coração. Só na luta ainda há beleza. Não existe obra-prima sem um carácter agressivo.


#2


Isto não é um espectáculo. O cachimbo do Magritte ERA, de facto, um cachimbo.


#3


Já estou preparado. Não espero. Vou eu. Nunca me tinha apercebido. Apercebi-me agora. É urgente. Precisaram de mim mas não se mexeram. Ninguém me foi buscar. Ninguém impediu que eu fosse. Não gritaram o meu nome para que voltasse. Deixaram que acontecesse. Telefonaram-me depois. Marcaram-me uma hora. Confirmaram-me o nome de uma rua. O número de uma porta. O andar. Eu fui a tua casa. Fui sozinho. Levei na mala apenas a vontade preguiçosa de ter voltado. Isto é tudo muito literal.


Há mais cidade cá dentro do que lá fora. (...) Entro em tua casa como se regressasse à minha terra natal depois de um quarto de século perdido em viagens. Está tudo tão diferente e simultaneamente parece que nada mudou. (...) Vou deixar-te coisas como que perdidas debaixo dos tapetes. Para quando as encontrares. É delicioso saber que vou ficar aí para sempre. É delicioso saber que me vais encontrar debaixo dos tapetes, nos parapeitos das janelas, no pó dos móveis, nas manchas de humidade do tecto, nas ranhuras do soalho, e dentro dos vasos, nas escadas, na fachada do prédio, nos buracos das fechaduras, e nas campainhas que oiço quando alucino e me lembro de ter mexido nas tuas coisas, de ter respirado o cheiro do teu quarto, de te ter visitado.