HABITAR
(**secções de um texto em desenvolvimento)
AIDA CASTRO & MANUEL BOGALHEIRO
Aproximação nº1 (para uma primeira abertura de escala)
Habitar, assim que se intitula a página, parece uma coisa inevitável, uma condição que se apresenta. Estar aí e aqui. Ocupar espaço. Residir. Moradas. Instalações. Desde logo a palavra está determinada a existir e à existência. É uma palavra, aqui escrita numa folha digital que será talvez impressa
a posteriori, e sendo palavra é uma abstração concretizada numa cultura e numa linguagem. A palavra habita, portanto. E habitar dirige-se para
a posteriori, se reconhecermos as formas, as matérias e o
modus operandi deste e daquele habitar postumamente através dos rastros. Haverá relações entre o habitar e o póstumo? Haverá compromissos? Há pelo menos o compromisso de imaginar como se habitou, habita e habitará. Ou haverá antes uma perpétua instalação do e no presente? Aquilo terminou; chegamos a casa; vens a nossa casa? A viagem continua; a performance infinda; a cortina vermelha já desceu; o teatro esvaziou; esvaziou-se dos objetos; os depósitos são cemitérios; os arquivos também; os dados, de
data, são rastreados; há lápis quase infinitos
[1].
Não há certezas sobre se habitar define o nosso estar no mundo, podendo adquirir nesse modo certo um significado universal de habitantes. Habitar, ou ser habitante, não será apenas demasiado humano e pode estender-se a um pré-condicionamento das presenças no meio. O meio como algo dado e que pode ser construído? E as presenças como algo que se demonstra nas experiências, nos modos, nas matérias e nos movimentos? Uma questão inquietante é a de saber se habitar corresponde, de facto, ao modo de estar no mundo, pois incalculáveis formas são constrangidas a estar-aí e assim naquele lugar e ambiente. Muitas destas tecem secretamente o habitat, tentando um metabolismo comum. Talvez habitar tenha que ver com constrangimento, habilidades e emancipações, podendo-se trocar respetivamente as palavras por “condição”, “técnicas e/ou experiências” e “progressos demasiado humanos”. Ou outras, de novo respetivamente, “meio”, “aparatos” e “resistências”, ou ainda para esta última apenas talvez “resiliências”. Ou ainda “palco”, “performance”, “arte”. Todas estas traduções, e mais aquelas que ainda não conseguimos imaginar a propósito deste jogo de trocas, admitem-se na constatação quase em tempo real deste limitado meio que é a linguagem. Aqui, a palavra habitar é pressionada a significar algo especialmente humano, deixando de lado incomensuráveis mundos de habitantes.
Aproximação nº 2 (ou ensaiar a mesma abertura por outras linhas)
Não há forma de habitar que não comece com o traçar de uma linha que separa um interior de um exterior ou, por outras palavras, que dá forma a uma ordem que é extraída da desordem. Contra a estranheza do mundo enquanto ser absoluto, contra a sua hostilidade bestial, a linha que traça a interioridade configura o domiciliário como o espaço da familiaridade singular e dos seus modos concretos de individuação. Não é apenas da ordem de uma mobilização física, de uma construção geométrica, mas, mais decisivamente, de um ocupar através de intervenções alegóricas, de posturas, de gestualidades e de outras disposições corporais, enfim, de uma matriz de repetições simbólicas que permita a instalação do hábito. O território marcado, enquanto espaço físico e material, não é assim, em nenhuma circunstância, indissociável de traços de expressão imateriais que trabalham a presença daquele que ali se hospeda para formar abrigo. Codificar para abstrair. Um pouco como a criança amedrontada que, no escuro, canta mecanicamente uma lengalenga para simbolicamente codificar um invisível, mas efectivo, perímetro de segurança que o protege do desconhecido: um pequeno cosmos.
A história das formas de organizar o espaço habitado é, então, uma história de gestos que instalam um modo de aparecer próprio a partir do qual se pode acomodar um domicílio. Essa história desconfia de que tenha havido uma matriz primeva de formas definidas a priori para acolherem aqueles que as vêm a habitar. Nenhum espaço, nenhuma casa, nenhum abrigo, precede aquele que o habita. Apenas na condição de um espaço ser habitado – vivenciado – pode surgir enquanto domicílio. Habitar não é uma condição, é uma situação. Habitar é uma disposição contingente, recomeçada uma e outra vez, em aberto, apesar de tudo, que territorializa através de uma determinada ritualização que faz da repetição tanto a constante como a variação de cada habitat.
Assumida a contingência do habitar, é apenas um pequeno passo para assumir a sua irredutível qualidade provisória. Ou, mais subtilmente, para assumir que nenhum espaço se pode fechar sem que compreenda uma linha de fuga algures num ponto, conhecido ou não, da sua tessitura. Não existe aquilo a que possamos chamar o traço de um círculo perfeito. Há sempre zonas intersticiais, nem totalmente do plano do interior nem do exterior, ou da ordem ou do caos. O domiciliário é, afinal, uma membrana permeável que, em vez de isolar perfeitamente, é um interface de vibrações entre cada um e o meio que o envolve. Está-se sempre na iminência desse círculo ser contraído ou descerrado, de impelir o nosso salto para fora dele ou para deixar entrar alguém estranho. A cada trânsito alteram-se as linhas. Ou, talvez melhor dizendo, irrompem linhas de errância que desterritorializam e que obrigam a que se improvise.
Com que espaço coincide a linha que é traçada? Com a nossa casa, com a casa de outro em que entramos, com o itinerário de Helsínquia a Lisboa, com o próprio planeta? Depois de identificada, reencontramos sempre uma escala maior, a da nossa própria alteridade.
Passagens
“A casa adquire a energia física e moral de um corpo humano (...) É um instrumento para enfrentar o cosmos. (...) Venha o que vier, a casa permite-nos dizer: serei uma habitante do mundo, apesar do mundo. O problema não é apenas relativo ao ser, é também um problema de energia e, consequentemente, de contra-energia. Nessa rivalidade dinâmica entre a casa e o universo, estamos muito distantes de qualquer referência a formas geométricas simples. Uma casa experimentada não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.”
Gaston Bachelard, [1958] La Poétique de l’espace, (1994), pp. 46 – 47.
“A nossa casa não preexiste; foi necessário traçar um círculo à volta do centro frágil e incerto organizar um espaço limitado. (...) Eis que as forças do caos são seguradas no exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a preencher, de uma obra a fazer. Há aí toda uma actividade de selecção, de eliminação, de extração, para que as forças íntimas terrestres, as forças interiores da Terra, não sejam submersas, para que possam resistir, ou até servir-se de alguma coisa do caos através do filtro ou crivo do espaço traçado.”
Gilles Deleuze & Félix Guattari, [1980] Mille Plateaux, p. 395
Deslocação
Ao longo das suas sucessivas reencenações, Vou A Tua Casa (2003-2025), de Rogério Nuno Costa, testa o gesto de ocupar um espaço estranho que passa a surgir como espaço apropriado. A ideia de testar não é aqui figurativa. Trata-se, efectivamente, nessa ocupação, de se jogar numa situação precária cujos desenlaces não podem verdadeiramente ser antecipados. Tensão entre guião e improvisação, indefinição do passo seguinte, ansiedade perante o fade out que se adia a si próprio. Entrar na casa que não é a sua, invadir o espaço alheio, penetrar numa intimidade que antes estava cerrada, apenas pode ser feito sob um certo deslumbramento que excede os automatismos quotidianos desse espaço. Em cada objecto, em cada peça de mobiliário, há um desvio possível, uma dramaturgia que não podia ser prevista, nem pelo performer nem por aqueles que assistem. Esta mesma distinção deixará, afinal, de ser relevante, nem convidados nem anfitriões, nem observadores nem observados. Contingência do domiciliário. Em termos simples, trata-se de um reabitar, ainda que ameaçado pela resistência do círculo para se fechar a si próprio. Ensaiam-se soluções imaginárias e leis que regulam excepções, mas tudo é provisório. No fim, pairará um vago aglomerado de resíduos ou vestígios – outros traços, portanto – que indiciam pouco mais do que um antes e um depois ou relançam a suspeita de que nunca regressamos a casa, ou a nós mesmos, da mesma maneira. Como um joguete paradoxal, porque, apesar de tudo, é ele próprio que é motor do jogo, Rogério Nuno Costa é, em Vou A Tua Casa, o performer que atravessa as linhas de corte por sua própria conta e risco, despojado por princípio, o performer que faz da sua frágil circunstância de deslocado a condição da sua existência.
Nesse performer ecoam, chamemos-lhe assim, várias figuras da negatividade que foram anunciando uma certa crise dos modos seguros do habitar, físico e simbólico, de um mundo que progressivamente transbordou para além das suas fronteiras históricas, também aqui, tanto as físicas, como as simbólicas. Entre essas figuras encontramos o indigente, o desterrado, o exilado, o estrangeiro, o nómada. São figuras que não são passíveis de ser reduzidas a uma categorização homogénea e certamente que a sua romantização ignorará feridas de várias naturezas. Mas em todas elas poderá ser reconhecida uma pulsão, uma pulsão que recusa qualquer nostalgia atávica que lamenta uma perda da experiência. Atravessada por um cepticismo fértil, nessa pulsão é a própria libertação da experiência que está em causa. Hipótese de recomeço e de reorganização, centelha de convulsão que abre espaço para um mundo ainda por figurar.
Passagens
“Pobreza de experiência: a expressão não significa que as pessoas sintam a nostalgia de uma nova experiência. Não, o que elas anseiam é libertar-se das experiências, anseiam por um mundo em que possam afirmar de forma tão pura e clara a sua pobreza, a exterior e também a interior, que daí nasça alguma coisa que se veja. (...) [Indigentes são] aqueles que desde sempre fizeram do radicalmente novo a sua causa, com lucidez e capacidade de renúncia.”
Walter Benjamin, [1933] Experiência e Indigência. In O Anjo da História.
Ed. e Trad. João Barrento. Assírio & Alvim, 2010
Planetariedade
Être partout chez soi. Desviamos abusivamente um fragmento de Honoré de Balzac para assinalar, precisamente, o seu contrário, isto é, a impossibilidade de em todo o lado nos podermos sentir em casa. Fazemo-lo porque acreditamos que, numa leitura livre à qual Balzac é alheio, estar em casa em todo o lado pode ser um adágio do imaginário da globalização. Anular a diferença e a estranheza em prol da acumulação desmedida de lugares familiares, universalizados, puramente abstraídos, isto é, equivalentes e intercambiáveis entre si sem prejuízo da sua identidade, sob o aparente conforto de que tudo foi personalizado para acolher cada um de nós, ao mesmo tempo que tudo é comum. Tudo é reconhecível em qualquer lado, a casa é onde o familiar nos envolver. Nesta imagem, o habitar é pervertido porque precede, como numa matriz, aquele que nele se instala.
Que outros imaginários sobre modos de habitar podemos ensaiar para além daquele que aparece capturado pela noção de globalização? O global – ou o globo como espaço liso e mapeável, recurso explorável e modelo manipulável – apenas parece dar conta dos processos económicos, financeiros e tecnológicos de abolição de fronteiras para a livre circulação de humanos, de capital e de materiais, universalizando uma visão cultural local, impondo o mesmo sistema de trocas de forma homogénea. A Terra, que é tomada nessa mobilização total, parece, apesar de tudo, resistir através da sua indiferença perante as imagens que os humanos dela produzem.
A partir dessa indiferença radical da Terra poder-se-á forjar um outro imaginário, o qual poderemos pôr nos termos, que herdamos de outras perspectivas, de uma planetariedade. A viragem da ideia de globalização para a ideia de planetariedade implica uma viragem de uma concepção totalizante, homogeneizante, hegemónica e humano-centrada para uma outra que, mesmo que especulativa, possa dar visibilidade às materialidades, aos processos de formação específicos dos ecossistemas terrestres e aos modos próprios de existência das suas espécies, sob a ética da diferença e da alteridade, mas também da simbiose e da relacionalidade. Nesta possível viragem, reconhece-se a condição de que durante o tempo profundo, que remonta a milhões de anos antes do advento da humanidade, a Terra teve a sua própria história, com os seus enredos, as suas formas de expressão e os seus acontecimentos próprios – apesar de não verdadeiramente figuráveis –, sendo uma história tão urdida quanto a história humana o é. A atenção dada à ancestralidade da Terra, às suas materialidades profundas ou às dinâmicas reticulares inter-espécies, reenquadra as actividades da própria espécie humana, expondo a natureza contingente dos pressupostos antropocêntricos e tornando possível, para o melhor e para o pior, imaginar a Terra depois, ou para além, dos humanos. Entre a globalização e a planetariedade joga-se, assim, um outro dualismo: entre a Terra que pensamos habitar, projectada de fora, figurada, politizada, mitologizada nas imagens do Atlas ou de Mercator, e a própria Terra habitada, a de dentro, com as suas convulsões, indiferente aos desígnios humanos, a Terra que, portanto, tudo antecede, antes de ter nome ou dela se formar qualquer imagem.
A categoria da planetariedade corresponderá menos a uma figura descritiva do que a uma visão ética e estética do planeta. No limite, pelo seu carácter especulativo, não será uma categoria verdadeiramente pensável ou conceptualizável. Como escreve Gayatri Spivak “pensar nisso [na planetariedade] já é transgredir, pois, apesar das nossas investidas naquilo que metaforizamos, diferentemente, como espaço externo e interno, o que está acima e além de nosso próprio alcance não é contínuo connosco, pois não é, na verdade, especificamente descontínuo” (2003, p. 73).
A partir daqui não podemos mais mapear-nos a partir dos dualismos do local e do ubíquo, do material e do imaterial, da presença e da mediação. A complexificação dos termos dissolve uma vez mais a própria distinção entre o mesmo e o diferente.
Passagens
O globo existe nos nossos computadores. Ninguém vive lá. Tal permite-nos pensar que podemos ter como objectivo controlá-lo. O planeta está do lado da alteridade, pertence a outro sistema; e, ainda assim, nós habitamo-lo, por empréstimo. (...) Quando invoco o [conceito de] planeta, penso no esforço necessário para imaginar a (im)possibilidade dessa intuição não deduzida. (...) Se nos imaginarmos como sujeitos planetários em vez de agentes globais, criaturas planetárias em vez de entidades globais, a alteridade permanece como qualquer coisa que não deriva de nós; não é a nossa negação dialética, é qualquer coisa que nos contém ao mesmo tempo que nos afasta. (Spivak, 2003, p. 73)
(**secções de um texto em desenvolvimento de Aida Castro e Manuel Bogalheiro)
[1] “O lápis evoluiu e surgiu a Revolution, uma lapiseira sustentável que não necessita de recargas nem apara-lápis. A Revolution possui uma tecnologia que consegue comprimir 100 grafites em nano partículas de grafeno, que é um material mais resistente que o grafite natural. O grafeno faz com que ele se desgaste mais lentamente que o grafite comum, o que torna a durabilidade desta lapiseira superior a 100 lápis comuns.” De Newpen, consultado
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